Além de atiçar pretos contra brancos e
vilipendiar o pardo (destituído da condição de pessoa), o novo sistema
de cotas proposto para as universidades federais pode destruir o ensino
brasileiro
O sistema de cotas nas
universidades brasileiras parecia um ponto pacificado na pauta das
discussões públicas no país. Afinal, nas duas últimas décadas,
praticamente todo o sistema de ensino superior – público, privado e
filantrópico – adotou algum tipo de política afirmativa, reservando
determinado percentual de vagas para alunos negros, indígenas ou
oriundos da escola pública. Em Goiás, por exemplo, todas as principais
universidades – UFG, UEG e PUC, além do IFG (antiga Escola Técnica
Federal) – adotaram algum tipo de cota em seus vestibulares. Mesmo
assim, as minorias reais ou fictícias que surgiram na esteira da
redemocratização do país jamais ficam satisfeitas e, agora, querem
obrigar todas as universidades federais do país a reservar a metade de
suas vagas para negros, indígenas e alunos oriundos das escolas
públicas. Projeto de lei neste sentido deve ser votado no Senado na
segunda quinzena de agosto e conta com o apoio do governo federal.
Guimarães
Rosa dizia que “Deus come escondido e o diabo sai por toda parte
lambendo o prato”. Já na política, a esquerda é quem come escondido,
enquanto liberais e conservadores saem por toda parte lambendo o prato
do fim das ideologias, sem se dar conta de que o inimigo lhes tira o
alicerce dos próprios pés e vai impondo ao país um verdadeiro fascismo
de esquerda. A nova rodada de discussões sobre as cotas nas
universidades é uma prova disso. Como a “direita” deixa assuntos do
gênero meio de lado, e só os debate sazonalmente, quando provocada pela
mídia, a esquerda, na surdina, se apossa deles e, com um trabalho de
formiguinha, impõe sua vontade à nação. Quem imaginava que a ousadia das
cotas chegasse a tanto, querendo impor 50% de reserva de vagas até nas
universidades federais? Pois chegou. E o que é mais grave: ela vai
consolidar o fascismo racialista que grassa no país, uma vez que as
cotas serão distribuídas segundo o percentual de negros, pardos e índios
da população, levando em conta o censo do IBGE.
Na
próxima terça-feira, 7, os defensores das cotas vão entregar um
manifesto ao presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), pedindo seu
apoio para que o projeto de lei seja mesmo votado ainda neste mês. Em 3
de julho último, os líderes das bancadas solicitaram urgência na
tramitação da matéria, cuja votação em plenário chegou a ser anunciada
pela vice-presidente da Casa, senadora Marta Suplicy (PT-SP), que
presidia a sessão do dia 4 de julho. Mas o projeto acabou não sendo
votado devido ao protesto do senador Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP) e
também devido à inclusão de várias medidas provisórias na pauta do
Senado. Aloysio Nunes não concordou com o fato de o senador Paulo Paim
(PT-RS) ter apresentado o relatório da Comissão de Educação sobre a
matéria diretamente em plenário, sem a devida apreciação dos demais
membros da mesma. O senador tucano por São Paulo considera excessiva a
reserva de 50% das vagas para o sistema de cotas e defendeu uma
discussão mais aprofundada da proposta.
Obsessão coletiva
Mas
as críticas de Aloysio Nunes Ferreira não devem surtir efeito. Graças à
antiga cantilena acadêmica de que no Brasil existe um racismo até pior
do que o dos Estados Unidos, a ideia de que as cotas são necessárias já
se tornou quase um consenso na sociedade e não são muitos os que se
arriscam a criticá-las integralmente, sabendo que se o fizeram serão mal
interpretados. Foi o que ocorreu com Demóstenes Torres e o DEM. Quando o
então senador, hoje cassado, e seu partido na época ingressaram no
Supremo Tribunal Federal (STF) contra a política de cotas raciais na
universidade, ambos foram duramente atacados na imprensa nacional. Até o
jornalista Elio Gaspari, em sua coluna na “Folha de S. Paulo” e no
jornal “O Globo”, reproduzida em vários jornais do país, desancou
Demóstenes Torres num artigo intitulado “A tese negreira do DEM saiu do
armário”, publicado em 7 de março de 2010. Na época, Demóstenes era um
senador de grande prestígio, tanto que conseguiu tornar um pouco menos
pior o Estatuto da Igualdade Racial (instituído pela Lei 12.288, de 20
de julho de 2010), retirando do seu texto a política de cotas raciais
nas universidades, no serviço público e no sistema de saúde.
Mas
não adiantou. Ao voltar à pauta do Senado, o projeto de lei que
institui as cotas nas universidades vai encontrar uma oposição cada vez
mais acabrunhada, além de intimidada pelo período eleitoral em curso,
que não é bom para discussões polêmicas, especialmente aquelas que
arregimentam os militantes profissionais dos partidos de esquerda
disfarçados de “movimento social” e intelligentsia acadêmica. Sem
contar que a proposta de reservar 50% das vagas das universidades
federais para alunos da escola pública, incluindo negros e índios, não
partiu de um deputado esquerdista, ainda que a esquerda seja uma
histórica defensora dessa causa, lucrando politicamente com ela. O
projeto de lei da Câmara (PLC 180/2008 no Senado), que trata das cotas, é
de autoria da deputada Nice Lobão (PSD-MA) e foi apresentado há 13
anos, em 24 de fevereiro de 1999, quando a mulher do ministro Edison
Lobão (PMDB-MA) iniciava seu primeiro mandato na Câmara (hoje, aos 75
anos, ela está no quarto mandato consecutivo e, segundo levantamento do
jornal eletrônico “Congresso em Foco”, é campeã de faltas na Casa,
devido a problemas de saúde).
Também em 1999, o
senador Antero Paes de Barros (PSDB-MT) apresentou projeto de lei que
instituía cotas para alunos oriundos da escola pública. A partir de
então, a proposta das cotas em universidades se tornou uma obsessão
coletiva de deputados e senadores de diversos partidos, inclusive nomes
expressivos da oposição, além do Poder Executivo. Ao menos 28 projetos
estabelecendo cotas nas universidades foram apresentados na Câmara e no
Senado. Na Câmara, os autores foram os seguintes: Celso Giglio (PTB-SP),
Raimundo Gomes de Matos (PSDB-CE), José Carlos Coutinho (PFL-RJ),
Antonio Cambraia (PMDB-CE), Eliseu Moura (PPB-MA), Aloizio Mercadante
(PT-SP), Dr. Hélio (PDT-SP), Nilson Mourão (PT-AC), Cabo Júlio (PST-MG),
Wagner Rossi (PMDB-SP), Nelson Pellegrino (PT-BA), Paulo Lessa
(PPB-RJ), Damião Feliciano (PMDB-PB), Enio Bacci (PDT-RS), Mariângela
Duarte (PT-SP), Dr. Pinotti (PMDB-SP), Eduardo Seabra (PTB-AP), Rubens
Otoni (PT-GO), Maria do Rosário (PT-RS), Tadeu Filippelli (PMDB-DF),
Eduardo Valverde (PT-RO), Paulo Lima (PMDB-SP), Carlos Nader (PL-RJ). E
no Senado: Antero Paes de Barros (PSDB-MT), Paulo Paim (PT-RS), Sérgio
Cabral (PMDB-RJ), Álvaro Dias (PSDB-PR) e Marconi Perillo (PSDB-GO).
Reserva na medicina
Em
2004, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva apresentou um
projeto de lei estabelecendo reserva de vagas no ensino superior para
alunos egressos de escolas públicas, especialmente negros e indígenas.
Todos esses projetos, inclusive o de autoria do Executivo, foram
apensados ao projeto original de Nice Lobão, mas, ao longo da tramitação
dessa massa de propostas, nos últimos 13 anos, ocorreram algumas
mudanças, inclusive com a rejeição de vários projetos que tinham sido
apensados ao projeto da deputada maranhense. Também foram apresentadas
várias emendas ao projeto, a maioria no sentido de radicalizar ainda
mais o sistema de cotas. O projeto original previa a reserva de 50% das
vagas em relação a cada instituição de ensino superior como um todo, mas
surgiram emendas propondo que esse percentual deveria ser estabelecido
por curso. Ainda em 1999, o relator do projeto, o então deputado Carlos
Abicalil (PT-MT), que integrava a Comissão de Educação da Câmara,
incorporou essas emendas ao seu substitutivo, que passou a definir as
cotas por turno e curso. Isso significa que, mesmo em cursos muito
concorridos como medicina, 50% das vagas terão de ser preenchidas por
alunos egressos de escolas públicas, contemplando-se também a
proporcionalidade entre pretos, pardos e indígenas.
O
substitutivo da Comissão de Educação acabou sendo aprovado pelo
plenário da Câmara em sessão extraordinária realizada em 20 de novembro
de 2008, sob a presidência do deputado Arlindo Chinaglia (PT-SP). Essa
data não foi escolhida por acaso, mas pelo fato de ser o Dia da
Consciência Negra, em que se celebra Zumbi dos Palmares. Isso mostra
que, mais uma vez, a oposição estava errada e se deixou enganar pelo PT –
mestre em encurralar os tucanos com os seus movimentos sociais de
proveta. Na época, como o Executivo havia mandado para a Câmara o
projeto de lei elaborado pelo Ministério da Educação, sob o comando de
Tarso Genro, que só previa cotas raciais, com base nos percentuais de
negros, pardos e indígenas da população, o substitutivo da própria
Câmara parecia um grande avanço, enfocando também as cotas sociais, ao
reservar vagas para alunos da escola pública. Até o então deputado Paulo
Renato de Souza (PSDB-SP), ex-ministro da Educação do governo Fernando
Henrique Cardoso, acabou rendendo-se ao substitutivo, por entender que
ele significava um avanço, por ser menos racialista, e deu seu voto
favorável ao projeto. A aprovação do projeto foi motivo de comemoração
entre os deputados, pois o texto final da matéria, segundo os
parlamentares petistas, resultou de ampla discussão com o movimento
social.
Um dos líderes desse dito movimento
social que defende a política de cotas no ensino superior é o presidente
nacional do Movimento dos Sem-Universidade (MSU), Sérgio José Custódio.
A imprensa brasileira leva a sério um movimento com esse nome e o líder
do MSU tem sido entrevistado por grandes jornais, como “O Globo”, “O
Estado de S. Paulo” e “Folha de S. Paulo”. Em todas as matérias em que
aparece comentando o projeto de lei das cotas, Sérgio Custódio é tratado
como legítimo representante de um movimento social independente. Os
repórteres nem se dão ao trabalho de saber qual é a sua formação. Caso
cumprissem esse dever básico do jornalismo, descobririam, sem nenhum
esforço, que o comandante máximo do Movimento dos Sem-Universidade é um
universitário formado, que chegou a dar início a um curso de mestrado,
interrompido em 2002. E sua formação não se deu numa fábrica de diplomas
qualquer – Sérgio Custódio, 46 anos, é formado em economia pela
prestigiosa Unicamp (Universidade de Campinas). Além disso, é filiado ao
PT de São Paulo e foi candidato a deputado federal, em 2006, e a
vereador em 2008. Nas entrevistas mais extensas, revela-se um verdadeiro
cabo eleitoral de Lula, cantando loas ao Pró-Uni e à “nova classe
média”, personagem coletivo da ficção econômica de Marcelo Neri, da
Fundação Getúlio Vargas.
Invencionice da academia
Se
no Brasil houvesse uma imprensa independente e lúcida e uma oposição
ética e corajosa, o movimento social que pressiona pela aprovação desse
tipo de lei seria desmascarado. Pois não passa de invenção das
universidades e ONGs. Mas, como ninguém contesta a legitimidade dos
gatos pingados que aparelham essas organizações, elas se fortalecem com o
tempo e pressionam de forma sistemática o Congresso, até conseguir a
aprovação de seus projetos, todos voltados para a coletivização do
indivíduo. O Estatuto da Igualdade Racial, que inspira a política de
cotas nas universidades, é um exemplo. No inciso IV do seu artigo 1º,
ele estabelece de modo arbitrário o que é ser negro ao definir a
“população negra” como “o conjunto de pessoas que se autodeclaram pretas
e pardas, conforme o quesito cor ou raça usado pela Fundação Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ou que adotam
autodefinição análoga”. Qualquer pessoa de bom senso sabe que essa
definição de negro – que engloba o pardo à força e afronta sua
individualidade – é estapafúrdia e imoral, mesmo assim, está sendo
imposta em todas as políticas públicas do país, especialmente nas áreas
de saúde e educação. Diante desse Estatuto, até Machado de Assis, um
pardo, seria uma não-pessoa. Tamanho absurdo só vira lei porque o
brasileiro que trabalha e sustenta o país não sabe o que se passa no
Congresso – a tal sociedade civil que lá comparece é formada por
profissionais de passeata, arregimentados por ONGs e universidades.
Do
modo como foi aprovado na Câmara dos Deputados, o projeto de lei
confere poderes abusivos ao Estado, que será o senhor do destino dos
estudantes brasileiros. Seu artigo 1º prevê que as “as instituições
federais de educação superior vinculadas ao Ministério da Educação
reservarão em cada concurso seletivo para ingresso nos cursos de
graduação, por curso e turno, no mínimo 50% de suas vagas para
estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas
públicas”. E o parágrafo único do mesmo artigo determina que a metade
desses 50% deverão ser reservados aos estudantes oriundos de famílias
com renda igual ou inferior a 1,5 salário mínimo per capita. Por
fim, o artigo 3º acrescenta que as vagas reservadas serão preenchidas,
por curso e turno, por autodeclarados negros, pardos e indígenas, no
mínimo igual à proporção dos mesmos na unidade da federação onde a
instituição de ensino estiver instalada. Ou seja, mais importante do que
o aluno estudar é ele se enquadrar na engenharia social do governo,
através das estatísticas do IBGE.
Um ponto
polêmico do projeto de lei é o seu artigo 2º, que retira a autonomia das
universidades e extingue com qualquer exame vestibular. De acordo com o
texto que será apreciado pelo Senado, “as universidades públicas
deverão selecionar os alunos advindos do ensino médio em escolas
públicas tendo como base o Coeficiente de Rendimento (CR), obtido por
meio de média aritmética das notas ou menções obtidas no período,
considerando-se o currículo comum a ser estabelecido pelo Ministério da
Educação e do Desporto”. Esse dispositivo mostra o quanto foi temerária a
aprovação desse projeto de lei na Câmara dos Deputados. Por esse
critério, bons alunos de uma escola pública exigente, em que boas notas
exigem muito estudo, seriam preteridos em relação a maus alunos de
escolas públicas ruins, em que é possível obter boas notas sem nenhum
esforço. Até os defensores do projeto admitem que é difícil defender
esse dispositivo e advogam que ele seja vetado pelo Executivo, com base
no fato de que, hoje, existe o Enem para fazer essa seleção dos alunos.
Emendar o projeto no Senado obrigaria sua volta à Câmara, o que os
militantes das cotas não querem de forma alguma, pois atrasaria sua
aprovação.
Provisório para sempre
O
projeto de lei também prevê reserva de vagas, com os mesmos
percentuais, nas instituições federais de nível técnico e médio, como o
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás (IFG). E,
reconhecendo a complexidade da implantação desse sistema de cotas, que
toca em definições controversas como raça e cor, o projeto de lei
oferece às instituições de ensino superior um prazo máximo de quatro
anos para se adaptarem à lei, caso aprovada em definitivo pela Senado. A
cada ano, elas teriam de implementar, no mínimo, 25% da reserva de
vagas prevista até completar os 50% exigidos pela lei. Por fim, o
projeto de lei prevê, em seu artigo 7º, o caráter provisório da política
de cotas, estabelecendo que o Poder Executivo promoverá, no prazo de
dez anos, a contar da publicação da Lei, “a revisão do programa especial
para o acesso de estudantes negros, pardos e indígenas, bem como
daqueles que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas
públicas, nas instituições de educação superior”. Mas como mostra o
norte-americano Thomas Sowell, todos os sistemas de cotas do mundo
(alguns já perto de completar um século) nasceram provisórios, mas, com o
tempo, não apenas se tornaram permanentes como foram ampliados.
No
Brasil, é óbvio, não será diferente. Caso esse projeto de lei seja
aprovado no Senado, daqui a dez anos o país não estará discutindo o fim
do sistema de cotas; muito pelo contrário, estará propondo sua
ampliação. Como essas cotas tendem a fomentar conflitos de raça, além de
agravar a má qualidade do ensino, vai acontecer com elas o que já
acontece hoje com o Estatuto da Criança e do Adolescente. Diante do
aumento da criminalidade juvenil promovida pelo Estatuto, o que fizeram
seus defensores? Radicalizaram ainda mais, transformando em crianças
adultos de até 29 anos por meio de uma emenda à própria Constituição.
Com as cotas será exatamente igual: daqui a dez anos, talvez até menos, o
Brasil estará não eliminando, mas ampliando a reserva de vagas nas
universidades – para beneficiar presidiários, não tenho dúvida. E quanto
mais a população achar que isso não é possível, por ferir a lógica e o
bom senso, mais fácil será a aprovação desse tipo de lei, que vira a
realidade pelo avesso e dificulta a vida do cidadão comum, chamado
apenas para pagar a conta.
(Publicado no Jornal Opção, de Goiânia, em 5 de agosto de 2012)
Fonte: Palavra Acesa
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