O
mito do voto como “dever irrenunciável”, invocado pela Constituição
brasileira, é de origem autoritária. Foi inventado pela ditadura de
Getúlio Vargas, em 1934.
Não simpatizo com o voto obrigatório. Esse tipo de voto nunca foi essencial para a democracia, nem para proteger o Estado de direito. Não é uma peça fundamental dele. O princípio da soberania do povo procura que todos os cidadãos tenham o direito de eleger suas autoridades e seus representantes, não que todos os cidadãos votem. É uma distinção fundamental. O que conta é que o voto seja livre, universal (um cidadão, um voto), direto ou indireto, igual e secreto. O voto obrigatório é um produto das circunstâncias, não de alguns princípios. É um recurso autoritário contra o abstencionismo. É uma espécie de aborto institucional que nenhuma das grandes democracias históricas, como Estados Unidos, Grã Bretanha e França acreditaram indispensável adotar.
Nas
grandes nações democráticas o voto é livre e facultativo, quer dizer,
que o eleitor não tem a obrigação jurídica de votar. O ato de votar é,
para ele, um ato livre de sua vontade, não o resultado de uma pressão
institucional.
A ideia do voto obrigatório nasce de duas falsas crenças: que o
eleitorado faz parte da função pública e que o cidadão não pode escapar a
essa condição, e que a abstenção falseia a consulta eleitoral. Porém, a
abstenção muitas vezes é uma posição política que tem direito a existir
e a se expressar. A abstenção é, também, em outros casos, o resultado
da fragilidade do aparato eleitoral, quer dizer, do regime político, não
da vontade do eleitor. Sem resolver este problema, o Estado onde o voto
obrigatório existe opta pela solução mais fácil: expor o eleitor a uma
dupla sanção: moral e pecuniária (multas). O voto obrigatório transforma
o eleitor consciente em um animal votante. Tudo isso é chocante e
degradante.
O
princípio de que o voto deve ser livre e isento de pressões é acolhido
pelas grandes nações democráticas, inclusive naquelas onde a abstenção é
relativamente alta, como Estados Unidos e França. Porém, ninguém (salvo
os grupelhos fanáticos sem remédio) põe em questão a legitimidade
desses regimes.
Na
Europa só quatro países praticam o voto obrigatório: Grécia,
Luxemburgo, Dinamarca e Bélgica. Este último país, minado por tendências
separatistas, não encontrou no voto obrigatório ajuda à solução da
grave crise institucional. Os Países Baixos renunciaram ao voto
obrigatório em 1970, e o cantão suíço de Berna se opôs à sua introdução
em 1999. A Constituição Europeia não prevê o voto obrigatório: os
europeus são livres para votar ou não votar. Na Austrália, onde o voto é
obrigatório nas eleições nacionais, há uma grande revolta contra isso:
as críticas aumentam, os abstencionistas se multiplicam e se negam a
pagar as multas.
Nos
Estados despóticos, ou nos sistemas políticos que são a antítese da
democracia, o voto obrigatório contribuiu para consolidar o detestável
regime. Na URSS de Stalin, o voto obrigatório era uma engrenagem a mais
do sistema totalitário, baseado na repressão violenta da população e em
falsas votações com listas únicas elaboradas pelo partido único.
Na
América Latina, o voto obrigatório não impediu o aparecimento de
fenômenos graves de corrupção do voto, nem evitou que oito dos nove
países que praticam o voto obrigatório tenham caído em violentas
ditaduras, como foi o caso, em certos períodos, do Brasil, Argentina,
Honduras, Equador, Uruguai, Chile, Bolívia e Venezuela. Na Costa Rica o
voto é obrigatório, porém não há sanção para o abstencionista. Tampouco
no Uruguai. No Brasil a maioria dos cidadãos está a favor do voto
facultativo, não obrigatório.
O
voto obrigatório nos países latino-americanos não aprofundou nem
estendeu a cultura democrática, nem a cultura legalista. O exemplo mais
dramático disso é o que ocorre na Venezuela de hoje.
O
mito do voto como “dever irrenunciável”, invocado pela Constituição
brasileira, é de origem autoritária. Foi inventado pela ditadura de
Getúlio Vargas, em 1934. Essa constituição deveria dizer, melhor, que o
voto é um direito, não que é um dever. O cidadão não é livre se seus
direitos são convertidos, por decisão do Estado, em deveres.
Na
Colômbia, a proposta de voto obrigatório fracassou durante a elaboração
da Constituição de 1991. Agora essa ideia perniciosa volta de maneira
súbita e sem que um debate a respeito tenha sido aberto à cidadania.
Lamento que parlamentares do Centro Democrático tenham acolhido espontaneamente a ideia ingênua de que o voto obrigatório “valorizará a democracia colombiana”,
sem se perguntar o que é que realmente está arruinando nossa democracia
e sem responder à pergunta sobre o quê há por trás da volta
intempestiva dessa curiosa iniciativa.
Por
que alguns querem introduzir na Colômbia o voto obrigatório nestes
momentos? Que relação existe entre esse ardil e o sistema de votação e
escrutínio eletrônico que outros querem impor como o único e o mais
generalizado?
Este
ponto, o da articulação desses dois temas, foi muito pouco analisado.
Eu creio que há uma relação entre as pressões para acolher o voto
obrigatório e as que há para que adotemos o voto eletrônico. Estimo que
os dois assuntos vêm juntos e fazem parte de um mesmo pacote dos setores
que querem fechar espaços à deliberação e reduzir a margem de manobra
da sociedade contra a tentação totalitária que a Venezuela exporta.
O
que restará da soberania popular, do papel central do eleitor, em um
país que ameaça com multas e com outras pressões aos cidadãos que não
votam, e que consegue que esse voto seja processado e peneirado por
máquinas cujo controle escapa aos cidadãos?
A
França não utiliza o voto eletrônico pois não confia nesse sistema.
Este país está satisfeito com o sistema atual, tradicional, do voto de
papel e da contagem e escrutínio manual em cada mesa de votação. Esse
ato de contagem é muito claro e muito controlado, e a transmissão de
dados é rápida. Inclusive mais rápida do que a dos países que usam o
voto eletrônico, como viu-se nesses dias no Brasil.
Na
França, graças a seu sistema de escrutínio manual e cidadão, não há
escândalo pelos resultados eleitorais, apesar da quantidade de eleições
que há neste país: eleição presidencial, eleições legislativas,
cantonais, regionais e europeias.
O
voto eletrônico na França não foi adotado para as eleições nacionais,
pois não convenceu ninguém. Na França o voto eletrônico é rechaçado por
duas razões: por ser opaco e por ser inverificável. Os acadêmicos,
sobretudo os catedráticos que estudaram esse tema, chegaram a essa
conclusão.
Três
protótipos de computadores de voto, ou máquina de votar, foram
estudados e ensaiados oficialmente na França (pelo Ministério do
Interior), mas não convenceram. Em nenhum desses ensaios o votante pôde
verificar que seu voto havia sido corretamente anotado pela máquina.
O
voto pela internet e o quiosque eleitoral, também foram analisados.
Todos tinham inconvenientes, na anotação do voto e na fase do
escrutínio. Na França outro detalhe do voto eletrônico aborrece muito:
ele despoja o eleitor do direito de participar do escrutínio primário
porque o computador o faz em total opacidade e sem que se possam
verificar os resultados. O eleitor deve confiar em um aparelho e isso é
ilógico e irresponsável.
As
autoridades e os acadêmicos franceses observam, evidentemente, os
experimentos pontuais de voto eletrônico em outros países desenvolvidos,
como Estados Unidos, Canadá e Bélgica. Os péssimos resultados desses
exercícios e a quantidade de incidentes que apareceram, não deixam uma
boa imagem desse sistema.
A
Colômbia vai engolir as promessas que fazem certos escritórios que
sabem que o voto eletrônico é um mercado enorme para seus sistemas? A
Colômbia quer fechar os olhos ante os abusos cometidos na Venezuela
mediante o voto eletrônico? Acaso ignoramos que a ditadura chavista
encontrou nesse sistema um instrumento capital para consolidar a
tirania?
Nos
testes que fizeram na França nem a velocidade da transmissão dos votos,
nem a segurança do voto emitido, foram garantidas. Por que a Colômbia
deve ignorar estas experiências?
Chantal
Enguehard, professora da Universidade de Nantes, a principal
especialista nesta matéria, diz que a segurança dos dados eleitorais é
deficiente no sistema eletrônico. Ela invoca os casos anômalos
aparecidos nesse sentido em votações nos Estados Unidos. Em um de seus
ensaios sobre o voto eletrônico, Chantal Enguehard explica que todo
incidente sofre atrasos colossais na publicação dos resultados e que
também há retardos enormes nas filas de votantes se há o menor problema
técnico, pois no geral só um computador é instalado, onde antes havia
dois ou três isoloires (cubículos onde o eleitor prepara seu voto em privado, ou cabine de votação).
É
hora de abrir os olhos na Colômbia sobre o voto obrigatório e sobre os
riscos que sofre para uma democracia assediada pelos ataques terroristas
a montagem de voto eletrônico mais voto obrigatório.
Tradução: Graça Salgueiro
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