Escrito por Olavo de Carvalho
No meio científico americano,
e excluídas as opiniões dos apologistas professos desta ou daquela
religião, o debate sobre a questão religiosa divide-se, grosso modo,
entre os que juram, como Daniel Dennet e Sam Harris, ser a religião uma
etapa superada na evolução biológica da espécie humana e os que afirmam
que a crença religiosa, ou ao menos uma vaga aspiração metafísica, é
uma necessidade permanente, imutável e indestrutível dos seres humanos.
Estes últimos chegam a acreditar que não existem ateus de verdade, que o
ateísmo é só da boca para fora (http://www.science20.com/writer_on_the_edge/blog/scientists_discover_that_atheists_might_not_exist_and_thats_not_a_joke-139982 ).
Os
argumentos a favor de cada uma dessas correntes são eruditíssimos e
ambas fazem questão de apoiar-se nas mais atualizadas pesquisas
científicas. É uma pena que tanto esforço intelectual se desperdice numa
discussão que parece ser calculada para não levar a parte alguma.
Desde
logo, os dois lados dão por pressuposto que a religião nasce de uma
“necessidade de crer”, esquecendo que a “fé” (mesmo aceitando-se a
premissa falsa de que ele que se reduza à mera crença) é um elemento
distintivo e típico do cristianismo, ausente ou rarefeito em quase todas
as demais religiões mundiais e numa infinidade de tradições religiosas
menores.
Para
um chinês do século V a.C. ou para os índios tupinambás do tempo de
Pedro Álvares Cabral, a religião oficial era a própria ordem social e
até a ordem do universo material. Como tal não constituía matéria de
crença, mas de obediência, rotina e senso prático. Perguntar se
acreditavam nela seria como perguntar se acreditavam na existência de
chuva. A opção de crer ou não crer só aparece em fases muito mais
diferenciadas da evolução cultural (como por exemplo na Atenas de
Sócrates), quando as instituições políticas se destacam progressivamente
das religiosas e abrem espaço para julgá-las e ser julgadas por elas.
Esse momento coincide, segundo o clássico de Bruno Snell (The Discovery of the Mind, reed. Dover, 2011), com a descoberta do eu consciente.
Em
segundo lugar, é impossível julgar uma necessidade psíquica sem ter
decidido antes se o objeto dela existe ou não. Se existe um Deus, a
necessidade de conhecê-Lo e de caminhar em direção a Ele é uma coisa;
outra totalmente diversa é o impulso de inventá-Lo caso ele não exista.
Transferir, portanto, o debate desde o problema da existência de Deus
para o da necessidade de crer n’Ele pode parecer um modo inteligente de
esquivar-se de controvérsias teológicas, reduzindo a questão às
dimensões do que pode ser abordado com os recursos da ciência atual, mas
é óbvio que toda discussão na qual o método determine kantianamente o
objeto em vez de amoldar-se a ele não pode levar jamais a nenhuma
conclusão válida sobre o objeto enquanto tal.
Em
terceiro, o mais mínimo estudo das religiões comparadas mostra que elas
são incomparáveis, que simplesmente elas não são espécies do mesmo
gênero. Que pode haver de comum entre uma religião que promete integrar o
homem no mundo físico e dar-lhe o domínio das forças naturais e outra
que lhe pede que dê as costas a este universo, que aceite mesmo a
miséria, a derrota e o fracasso nesta existência para obter a vida
eterna num outro mundo totalmente inimaginável? Se você lê o Corão, vê
que ali está um código civil inteiro, regulando todas as relações
sociais, a propriedade, o comércio, o direito de família etc. Qualquer
código diferente é um crime e deve ser abolido à força, por ordem de
Deus. Ao cristão, ao contrário, o Evangelho recomenda que obedeça a
qualquer código vigente, com total indiferença. Como supor que remédios
tão heterogêneos atendam a uma mesma “necessidade”?
Em
suma, o debate inteiro parte da premissa de que todas as religiões são
“sistemas de crenças”, entendendo crença no sentido kantiano daquilo que
se pode pensar, mas não saber. O conteúdo das crenças sendo portanto
indiscutível cientificamente, só resta estudá-las em si mesmas, fazendo
abstração do seu objeto e dando por pressuposto que as religiões são
fenômenos do imaginário coletivo, alheios à esfera da “veracidade”, que é
própria da ciência. Acontece que, dentre as religiões, pelo menos uma, o
cristianismo, não proclama a crença em ideais etéreos e incognoscíveis,
mas em determinados fatos da ordem histórica e natural, perfeitamente
acessíveis ao estudo científico. O historiador pode averiguar se as
profecias de Fátima se cumpriram ou não no prazo indicado e o médico
pode atestar se as curas miraculosas efetuadas por meio do Padre Pio se
realizaram ou não. Ambos podem examinar pessoalmente as centenas de
corpos intactos de santos católicos mortos há cinco ou dez séculos e
investigar se fenômenos similares se observam ou não (a resposta é
“não”) em outras religiões. O cristianismo é por excelência a religião
do milagre, e um milagre que não se realize no domínio dos fatos, neste
mundo visível, não é milagre de maneira alguma.
Reduzir
todas as religiões a sistemas de crenças sobre o incognoscível é fazer
abstração da diferença essencial entre o cristianismo e as demais
religiões, ou seja: mutilar gravemente o objeto de estudo para
encaixá-lo numa definição preconcebida. O debate inteiro, portanto, na
mesma medida em que se pavoneia de científico, falha a uma das condições
mais elementares do método científico e deve ser considerado uma gigantesca desconversa.
Publicado no Diário do Comércio.
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